Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.
1 Coríntios 10:31
A música tem me presenteado com a oportunidade de conviver com muitos músicos de altíssimo nível, sendo alguns deles músicos profissionais, ou seja, aqueles que foram vocacionados a fazerem da música um meio de vida, exercendo-a como profissão. Mas quando se fala de músico profissional e vida cristã, uma tensão pode vir a existir. Isto porque de um lado uma grande parte da igreja acha incompatível a profissão da música com a fé. É comum saber de igrejas que se alegram quando profissionais da saúde, educação ou justiça se convertem, mas que aconselham um músico profissional a “deixar a velha vida” para, a partir de agora, tocar para a glória de Deus no culto. Por outro lado, já soube de músicos profissionais crentes que encaram sua profissão à parte de sua fé, ou seja, se submetem a condições que podem ser até ser incompatíveis com o evangelho, mas o fazem sob o argumento de que são profissionais e têm que ganhar a vida. Neste texto pretendo fazer uma breve reflexão (assumo: lacônica) sobre o tema do músico profissional e sua vida na igreja. Espero apontar algumas pistas que amenizem tensões já existentes, ajudando tanto a igreja quanto aos músicos profissionais que são convertidos por Deus.
I. REFLEXÕES SOBRE A IGREJA E O CRENTE PROFISSIONAL DA MÚSICA
É comum encontrarmos excelentes músicos e cantores que se descobriram não nos “bailes da vida”, mas na vida da igreja. Alguns foram “convidados” a optarem entre a igreja e a profissão. Infelizmente, por falta de sabedoria de lideranças eclesiásticas, alguns findam saindo da igreja para viverem profissionalmente da música.
1. A música não precisa estar relacionada ao culto para que glorifique a Deus
A música faz parte do que conhecemos por “graça comum”. Por um “capricho” divino, a primeira referência da música na Bíblia está atrelada à família de Caim: Gênesis 4:21 – O nome de seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. Lógico que não se trata de um capricho. Está claro que a música é uma manifestação da graça divina para a alegria e bem estar da humanidade, mesmo daquela que não esteja sob o pacto de salvação.
Davi – o musicista e compositor mais conhecido da Bíblia – não se valeu da música apenas para o culto: 1 Samuel 16:23 – E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele. Esse espírito mal era um claro julgamento de Deus sobre Saul, mas a música tocada por Davi aliviava o espírito atormentado do rei.
Tanto Jubal quanto Davi glorificaram a Deus através do dom que receberam das mãos divinas, tanto quanto um cirurgião, que não exerce sua profissão no culto solene, mas que glorifica ao exercer seu dom com maestria e destreza.
2. É preciso orientar o crente músico profissional a como viver uma nova vida
Qualquer pessoa, seja um advogado, parlamentar, médico ou mecânico que se achegue a Deus, carecerá de discipulado para ensiná-los a viver a nova vida que Deus lhos deu. Observe o texto de 1 Coríntios 6:9-11 – Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, 10 nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus. 11 Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus. Não se trata de profissão, mas da transformação interior que implicará numa nova postura na vida profissional.
Um músico profissional deve ser orientado tanto quanto qualquer outro crente quanto aos perigos e desafios de sua profissão, devendo receber todo o suporte espiritual para que saiba se portar no meio musical. Um Deputado Estadual não precisará abandonar a carreira parlamentar pelo fato do ambiente de seu trabalho ser repleto de transações ilícitas, mas deve estar disposto a pagar o preço por ser uma nova criatura, tanto se negando ao ilícito quanto promovendo a justiça de acordo com a Palavra.
Apimentando um pouco mais, há igrejas que podem achar comum um crente jornalista, guarda municipal ou paramédico exercer sua profissão num desfile de carnaval. Algumas lideranças eclesiásticas chegariam a ver esses irmãos quase como mártires: sacrificados porque têm de estar naquele local pecaminoso, mas achariam inaceitável que um músico crente viesse a tocar no mesmo evento. “Ah... mas é diferente...”, argumentariam, “o músico está participando diretamente da promoção do ambiente pecaminoso”. Bom, mas e o guarda municipal? Ele está cuidando para que haja ordem a fim de que os foliões curtam a noitada (pecaminosa) com segurança! Estão em áreas diferentes, mas servindo a um propósito em comum. “Ah... mas o guarda municipal não tem escolha!”, argumentariam. Discordo! Sempre temos escolha, mesmo que isto represente um desconto no soldo ou prisão para um guarda. Por que apenas o músico deve abrir mão do cachê que receberá por seu trabalho e o guarda municipal não?
Não estou defendendo aqui que o músico deva tocar num baile carnaval ou num desfile de escola de samba. Quero apenas destacar que a Bíblia fala de atitudes que os crentes devem ter independente de sua profissão. Como profissionais, lidamos com escolhas e estas devem ser coerentes com os princípios bíblicos. Se o ambiente não for bom, não o será para ninguém: nem para o músico e nem para o garçom crentes.
3. O crente músico profissional deve exercer ministério na igreja
Por ser uma habilidade ligada à profissão, é inevitável que associemos o ministério do músico profissional ao da música na igreja. Sem dúvida que a participação de um músico profissional no ministério de música acrescentaria muito em termos da qualidade musical da igreja. Mas assim como um médico não precisa exercer um ministério na igreja correspondente à área de saúde, um músico não precisa exercer o ministério da música, mas precisa exercer um ministério numa igreja local. Pode ser um presbítero ou diácono, presidente do conselho de missões ou outro ministério, contanto que exerça um serviço no corpo de Cristo.
Infelizmente, algumas igrejas ainda acham que o músico profissional, por não tocar apenas “música sacra”, está desqualificado para tocar no culto. Entretanto, como crente verdadeiro, um músico não só pode exercer seu dom no ministério da música na igreja como deve exercer algum outro ministério, pois ele é membro do corpo de Cristo!
II. REFLEXÕES SOBRE O CRENTE PROFISSIONAL DA MÚSICA E A IGREJA
Imagino que a vida de um músico profissional seja cheia de pressões desde o momento em o músico opta por ela. Pela instabilidade do mercado musical, muitos pais temem que os filhos venham a passar necessidades materiais, sugerindo insistentemente que sigam carreiras mais “sólidas e estáveis” como a medicina ou advocacia, por exemplo.
Na sociedade, uma pressão muito forte é o preconceito de que todo músico profissional tem uma vida boêmia e está envolvido com álcool, drogas, noitadas e sexo. Isto é tão injusto quanto afirmar que todo pastor toma dinheiro dos fiéis, todo político é ladrão e todo advogado está envolvido em negócios escusos. Conheço músicos profissionais não crentes que tocam na noite e que sequer chegam perto do álcool. Tudo que querem é receber o cachê e ir pra casa cuidar da família. Muitos desconhecem ainda que a profissão de músico pode ser exercida numa sala de aula ou em horas de estúdios de gravação, seja arranjando seja executando arranjos. O trabalho é duro!
1. O profissional da música não deve subestimar os riscos de sua profissão
É preciso que se diga que toda profissão tem seu lado obscuro. Mesmo não sendo considerada uma profissão, há pastores que exercem sua vocação de maneira desonesta, enganando e fazendo da fé um negócio. Há médicos legistas que burlam laudos. Há policiais que aceitam propina. Há contabilistas que fraudam balancetes. Mas isto não me permite dizer que essas profissões são imorais e ilícitas, ou que todos os que a exercem são faltos de caráter. O problema está sempre relacionado a um coração naturalmente corrupto e sem o domínio do Senhor.
O crente que é músico profissional também terá que lidar com perigos. Em alguns casos conviverá com maus profissionais que se drogam ou se valerão de seu destaque no palco para desenvolverem “casos amorosos”. Num eventual trabalho com pessoas assim, ele deve lembrar que está ali para influenciar e não para ser influenciado. Não deve “baixar a guarda” e nem se descuidar de que sua vida existe para glorificar a Deus (1 Co 10.12).
2. O profissional da música e alguns cuidados com seu ambiente de trabalho
1. Reconhecer que suas habilidades foram dadas por Deus e que deve glorificá-lo por meio dela. Sua motivação em tocar num show ou num estúdio está em fazer o melhor para que Deus fique alegre com a excelente maneira como ele está usando seu dom.
2. Lembrar-se de que é um crente acima de tudo, e que tem a missão de ser sal e luz onde quer que esteja.
3. É preciso fazer escolhas. Assim como outros profissionais, o que vive da música deve estar disposto a recusar shows ou outras propostas profissionais que firam sua consciência e os princípios das Escrituras. Assim como ser um advogado não será “carta branca” para aceitar qualquer casou ou ser um contador não será concessão para forjar balancetes, ser um músico profissional não significa que tocará todo tipo de música, em qualquer lugar e sob qualquer circunstância. Mesmo sendo uma boa proposta, se fere sua consciência, o crente músico profissional deve recusar e buscar a Deus. Por ser Fiel, Ele mostrará outro trabalho e não deixará que seu filho passe necessidade (Salmo 37.25).
3. O crente profissional da música integrado numa comunidade local
Hebreus 10:25 – Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima.
Todo crente deve estar integrado numa comunidade local. Cumpre-me ressaltar que, por mais que Paulo abordasse em suas cartas assuntos relacionados à igreja universal, ele sempre se dirigia a uma igreja local, destacando em algumas ocasiões irmãos que congregavam nelas: Romanos 16:1: Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está servindo à igreja de Cencréia; Romanos 16:3a e 5a: Saudai Priscila e Áqüila... igualmente a igreja que se reúne na casa deles. Isto porque o crente, servindo a uma igreja local (como Febe, no versículo acima), conviverá com irmãos, prestará contas de sua vida e será pastoreado. Discordo do “ministério itinerante” (refiro-me a crentes que não possuem vínculo algum com uma igreja local e que cada final de semana estão numa igreja diferente) ou do movimento “sem-igreja” (algumas pessoas que se dizem decepcionadas com a “instituição” e que optam por se “auto-pastorearem”, desenvolvendo sua própria espiritualidade). Biblicamente, a fé deve ser vivida de maneira comunitária-interativa e não pessoal-individualista. Mesmo Paulo, que era um plantador de igreja, permanecia um tempo vivendo e convivendo com uma igreja (Atos 20.31 – três anos em Éfeso).
Sou sensível a músicos que, por força de profissão, precisam viajar nos finais de semana, mas isto não é razão para não ser membro de uma comunidade local. A maioria das igrejas possui cultos e atividades durante a semana que possibilitam um envolvimento e compromisso. A igreja e seu pastor credenciam o servo, da mesma forma que Paulo o fez com Febe! Isto deve ainda ser aplicado à realidade de irmãos de qualquer profissão que estejam impedidos, por motivo de trabalho, de concorrerem à igreja nos finais de semana.
Conclusão
Tanto a igreja quanto o músicos profissionais que têm sido salvos por Deus devem caminhar de acordo com as Escrituras. Tanto um quanto o outro devem se dispor a abrir mão de algo que defendem se não tem base Bíblica suficiente, e só o Espírito pode dar paz e levar a um denominador comum.
Este artigo está longe de abordar e resolver todos os problemas e tensões que envolvem a igreja e o crente músico profissional. Minha esperança é de haver lançado luz sobre algumas dificuldades e colaborado para um debate lúcido sobre este tema, pouco abordado mas muito polemizado. Na força do Senhor,
Heleno Guedes Montenegro Filho
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